segunda-feira, dezembro 21, 2009

O Natal do Papai Noel

Joseph Olsen tem 65 anos e mora na Zona Sul de São Paulo. Veio ainda pequeno para o Brasil, com seus pais que fugiam da guerra na Europa. Desde sempre, morou naquela casa humilde, num bairro que nunca prosperou de fato. E do pai herdou apenas a profissão de encanador com a qual sustenta a si e a D. Betina, com quem vive há mais de vinte anos, e tem fama de ser tão mau-humorada e turrona quanto ele. Nunca tiveram filhos e viviam implicando com a molecada da rua, que fazia ainda mais questão de provocar algazarra na frente da casa deles.
Este ano, um desses scouters de agência publicitária, abordou o Sr. Olsen na parada de ônibus, oferecendo emprego de Papai Noel no fim do ano. Seu tipo robusto, de olhos azuis, cabelos e barba brancos era perfeito para o papel! O Sr.Olsen fez sua cara feia de costume, não disse uma palavra e enfiou o cartão da agência no bolso, esquecendo-o ali. Quando D. Betina o encontrou e perguntou o que era aquilo, o Sr. Olsen respondeu com sua rabugice de sempre:
-Um maluco quer que eu seja enfeite de Natal. Joga isso fora logo, ô mulher enxerida!
Mas D. Betina, ao invés disso,começou a resmungar que era por isso que eles viviam na miséria, que o marido era um idiota que não aproveitava nenhuma oportunidade...depois foi subindo o tom de voz, reclamando do estado da casa, do carro, das dívidas...e por fim, acabou declarando que o Sr. Olsen ia sim, trabalhar de Papai Noel, porque eles não estavam na posição de recusar dinheiro.

E foi assim que naquele fim de noite quente e chuvosa, 19 de Dezembro, o Sr. Olsen veio correndo e xingando se abrigar na parada de ônibus. Estava cansado, mais rabugento que nunca, maldizendo a mulher que o obrigara a passar aqueles dias aturando os filhos mimados da gente bem de vida. Saíra atrasado, devido ao grande movimento do shopping,o gerente o obrigara a ficar muito além do horário, e agora o Sr. Olsen não tinha certeza se havia perdido o último ônibus. A rua estava deserta. Praguejando, tirou do bolso ensopado um maço de cigarros baratos. Tirou um cigarro amassado e tentava acendê-lo.
-Oh, p*ta que pariu, só faltava mesmo essa m*rda estar molhada..!
-Papai Noel! É o senhor!?

O Sr. Olsen quase teve um ataque cardíaco com a exclamação. Julgava-se sozinho. Mas em menos de um segundo, um mulatinho magricela e careca surgiu do meio de um monte de papelão embaixo do banco da parada.

-C*ralho, moleque, tá querendo me matar?
-Papai Noel, o senhor veio!
-Que Papai Noel p*rra nenhuma, pivete! Vaza daqui, vai, vai cheirar cola ou assaltar algum bacana no farol..!

O menino riu

-Qué isso, Seu Noel, não faço essas coisas não..!
-Ah, é. Então você mora na rua porque gosta do estilo de vida.
-Olha, gostar, gostar eu não gosto muito, não, mas não dá pra reclamar, também. Tem a parte boa.
-Que é o quê? Não apanhar do seu padrasto bêbado?
-Ih, tenho padrasto não, Seu Noel..!
-Da biscate da tua mãe, então?
-Olha, bem da verdade, lembro muito da minha mãe, não. Nem sei se era biscate ou beata. Desde sempre, o que eu lembro, é dessa vida aqui. Até morei uns tempinhos com uma tiazinha lá, uma tiazona aqui, um abrigo ali...Mas vivo bem é na rua, mesmo. A comida é quase a mesma coisa e eu ainda posso escolher onde vou dormir. E ás vezes acontece até umas coisas legais assim! Quem diria que o senhor ia mesmo aparecer, hein, Seu Noel?
-Se liga, moleque, eu não sou Papai Noel.
-Como não? Essa barba branca, esse olhão azul, essa pança...Abre essa mala aí, aposto que a roupa vermelha tá aí dentro!- o moleque fez menção de pegar a mochila surrada do Sr. Olsen (onde, de fato, estava a fantasia de Papai Noel que ele usava no shopping), mas o velho deu um safanão:
-Tá pensando o quê, vagabundo!- o menino ria ainda mais, certo de que sua suspeita estava confirmada.
-Tô pensando nada, não..! Tô feliz que o senhor tenha aparecido, só isso...o senhor não sabe há quantos anos eu espero pra ver o senhor, Seu Noel!
-Vai alugar outro.Você não tem nem mais idade pra acreditar em papai noel, moleque.
-Eu tenho treze anos...podia até não acreditar, mesmo. Mas todo fim de ano eu sempre vi o senhor em tudo o que é propaganda, de placa, de TV...mas nunca assim de pertinho. Eu até achava que o senhor não existia, mesmo, que era tudo de mentira...Mas agora que eu acredito mesmo, olhaí! a barba é de verdade..!
O menino passou a mão na barba da Sr. Olsen. Ele permitiu por um segundo, depois se afastou
-Quê..! -resmungou. -Ô seu pivete, você acha que se eu fosse papai noel ia estar aqui, todo f*dido, esperando o ônibus, hein? Não ia ser muito mais fácil pegar meu trenó e voar pra casa?
-Ah, mas isso aí eu sei que é mentira! - o menino disse, triunfal. -Isso aí eu sei que já é fantasia, tipo coisa de TV. Essas coisas de rena, neve...Isso não existe!

Então, um pensamento invadiu a mente do Sr. Olsen: a lembrança da neve no seu país de origem. Uma lembrança há muito deixada de lado, a visão e sensação dos flocos caindo mansamente, o pisar fofo e frio na relva coberta de branco...e como era gostoso deslizar no trenó nas colinas em volta da casa, onde sua mãe já preparava um farto jantar para ele e seu pai. Lembrou-se do bosque habitado por belas renas selvagens que gostava de observar ao longe. Não, elas não voavam...ou voavam? -perguntava-se o jovem Joseph, rolando uma bola de neve nas mãos.

-Tá pensando que ônibus vai pro Pólo Norte, é? - o menino interrompeu seus pensamentos com a brincadeira. O Sr. Olsen deu um resmungão. Estava de volta ao ponto de ônibus sujo, ao rapazola impertinente.
- Como é o seu nome, moleque? -ele perguntou, oferecendo um cigarro que o menino recusou.
- Zé das Caixas.
- Isso é nome de gente?
- Sei lá, é assim que todo mundo me chama. É porque eu sou catador, tá ligado? Cato caixa de papelão pra vender. É assim que eu vivo: as caixas são tipo uma mãe: me dão casa e comida.
- Isso aí não é casa, muito menos mãe
- Bom, eu já disse pro senhor que eu não tive mãe. Mas as caixas nunca me deixaram na mão.
- Você é maluco.
- Mas sou bonzinho, né, Seu Noel? Eu sei que o senhor não aparece pra quem não se comporta bem...
O Sr. Olsen se lembrou das crianças do shopping. A maioria era sempre tão bem-vestida quanto mal-educada.Era óbvio que sabiam que acreditar em Papai Noel era um jeito prático de obrigar seus pais a darem-lhe os presentes listados. Era apenas isso que importava: os presentes. Nenhuma das crianças cheirosas e saudáveis da população economicamente ativa demonstrara uma satisfação tão legítima apenas em ver o "bom velhinho" quanto a que se estampava no rosto do jovem encardido e ossudo, encarando-o com os olhos brilhantes de quem presencia um verdadeiro milagre de Natal.
- Não, Zé das Caixas, você não deve ser tão bonzinho. Afinal, eu não trouxe nenhum presente para você.
-Mas, Seu Noel, eu nunca lhe pedi nenhum presente!
-Então, de que te interessa um Papai Noel, criatura?!
- Um presente pode ser qualquer coisa, em qualquer dia. Já ganhei muito presente de aniversário...E no Natal, sempre aparece alguém dando presente: bola, carrinho, roupa...Mas Papai Noel que eu sempre quis,nunca veio. Achei que eu não merecia, mesmo.Mas agora, olha o senhor aqui, conversando comigo!

O Sr. Olsen já havia aberto a boca para dar uma resposta atravessada e resmungona, mas não conseguiu. Calou-se comovido, e virou o rosto para o menino não ver seus olhos azuis ligeiramente cheios d'agua. A rua então, iluminou-se: era o ônibus que se aproximava. Com a chuva, ele havia se atrasado. Ele fez sinal, o coletivo parou. O Sr. Olsen já havia embarcado, mas antes que a porta do veículo se fechasse, ele voltou-se para Zé das Caixas, que ainda lhe sorria, sorriso gostoso de inocência.

O Sr. Olsen revirou os olhos e deu um longo suspiro, antes de ordenar, com seu costumeiro tom rabugento:

-Entra logo, moleque.Já está na hora de você saber a diferença entre uma caixa de papelão e uma casa.

Zé das Caixas chispou pra dentro do ônibus. Abraçou o Sr. Olsen, afundando seu rosto na barba branca com a qual ele tanto sonhara, tentando conter os soluços. O Sr. Olsen também segurava uma lágrima tímida, que tentava a todo esforço rolar pela face que esboçava um sorriso. Pensava na reação de D. Betina.Ela iria ralhar, é claro que ralharia! Mas ele também sabia que o amargor da mulher era justamente a falta da doçura de um filho que a vida lhe negara. Estava decidido: daria a Zé das Caixas, que jamais pedira presente algum, um lar, e um nome. E o levaria a conhecer a sua terra, onde neve, trenós e renas existem...
Existem?

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